O Juiz Giovani Augusto Serra Azul Guimarães, da Comarca de Ribeirão Preto, relaxou a prisão de Eduardo Cornélio, comerciante famoso nas redes, cuja prisão causou comoção nacional ao ser transmitida em “live”, pelos fundamentos abaixo, os quais destacamos com grifos.
O Jornal no Ataque transcreve a sentença, equivalente a uma “carta de alforria” para a população, oprimida por governadores e prefeitos, os quais querem jogar, por meio de prisões e repressões cada vez maiores, uma cortina de fumaça possa ocultar a má-gestão dos bilionários recursos que a União enviou para os estados e municípios. Muitos estados, como o Rio Grande do Sul, utilizaram os recursos para abater déficit interno e agora, no pior momento da pandemia, trancam a população para fazer parecer que estão agindo para conter a pandemia, de quebra atrapalhando o governo federal, buscando “cavar a falta” para obtenção de mais recursos. No meio deste cenário surge lucidez jurídica. Segue sentença na íntegra:
Decisão
Vistos. Trata-se de comunicação de prisão em flagrante de EDUARDO JOSÉ CORNÉLIO DE OLIVEIRA, pela suposta prática dos delitos previstos nos artigos 268, 286 e 330 do Código Penal. Dispensada a realização de audiência de custódia, nos termos do Provimento CSM 2.548/2020 e do Comunicado CG 232/2020, ambos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, e da Recomendação 62/2020 do Conselho Nacional da Justiça. A Defensoria Pública pleiteou a concessão de liberdade provisória ao preso, sustentando a ausência dos requisitos autorizadores da prisão preventiva, enquanto o Ministério Público pugnou pela conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, em suma, por ter o indiciado reiterado o descumprimento de determinações sanitárias e incitado outros comerciantes a fazerem o mesmo, em desrespeito aos decretos de calamidade pública. A prisão em flagrante comunicada é manifestamente ilegal e deve ser relaxada, nos termos do art. 5º, inciso LXV, da Constituição da República, e do art. 310, inciso I, do Código de Processo Penal. De acordo com a capitulação jurídica atribuída pela autoridade policial, a conduta do preso, consistente em manter seu estabelecimento comercial aberto, em desobediência à determinação do Governo Estadual, que ordenou o fechamento do comércio na chamada Fase Emergencial da pandemia de Covid-19, e ter incitado outros comerciantes a fazerem o mesmo, teria caracterizado os crimes definidos nos artigos 268, 286 e 330 do Código Penal. A Constituição da República, em seu art. 5º, reconhece, entre outros, os direitos fundamentais, inerentes à dignidade humana, à propriedade (caput), ao livre exercício do trabalho, ofício ou profissão (inciso XIII), à intimidade, à vida privada e à honra das pessoas (inciso X) e à livre locomoção no território nacional em tempo de paz (inciso XV). Conforme ressabido, de acordo com os artigos 136 e 137 da Magna Carta brasileira, as únicas hipóteses em que se podem restringir alguns dos direitos e garantias fundamentais são os chamados Estado de Defesa e o Estado de Sítio, cuja decretação compete ao Presidente da República, com aprovação do Congresso Nacional, nos termos dos mesmos dispositivos constitucionais citados. Atualmente, não vigora nenhum desses regimes de exceção no Brasil, de modo que o direito ao trabalho, ao uso da propriedade privada (no caso, o estabelecimento comercial) e à livre circulação jamais poderiam ser restringidos, sem que isso configurasse patente violação às normas constitucionais mencionadas. Veja-se que nem a lei poderia fazê-lo, porque, não havendo decreto presidencial, aprovado pelo Congresso Nacional, reconhecendo Estado de Defesa ou Estado de Sítio e estabelecendo os limites das restrições aplicáveis, tal lei seria inconstitucional. No presente caso, o que ocorre é mais grave: tal proibição foi estabelecida por decreto do Poder Executivo. O decreto governamental é instrumento destinado exclusivamente a conferir fiel cumprimento à lei; presta-se unicamente a regulamentá-la. Não lhe é permitido criar obrigações não previstas em lei (o chamado decreto autônomo). É o que decorre do art. 5º, inciso II, da Constituição da República, segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Portanto, o decreto em que se fundou a prisão do indiciado, pelas razões até aqui expostas, é manifestamente inconstitucional, e, portanto, nulo de pleno direito, de modo que os elementos imprescindíveis à caracterização dos tipos penais imputados pela autoridade policial ao indiciado – determinação do poder público (art. 268 do CP), prática de crime (art. 286 do CP) e ordem legal (art. 330 do CP) evidentemente não se concretizaram no caso em análise. De fato, como admitir: (1) que um decreto do Poder Executivo, cujo teor viola francamente o texto constitucional, possa ser considerado validamente uma determinação do poder público; (2) que seu descumprimento possa ser considerado prática de crime; e (3) que a ordem emanada de funcionário público para seu cumprimento seja uma ordem legal? Admiti-lo equivaleria à total subversão do ordenamento jurídico. O fato praticado pelo indiciado, portanto, é notoriamente atípico. Não bastasse, o Supremo Tribunal Federal já decidiu com bastante clareza, na ADI 6341 (Rel. Min. Marco Aurélio, redator do acórdão Min. Edson Fachin), que as medidas adotadas pelas autoridades governamentais no combate à pandemia de Covid-19 devem ser devidamente justificadas, obedecer aos critérios da Organização Mundial da Saúde e gozar de respaldo científico. Eis a ementa do mencionado precedente, com destaques nossos: EMENTA: REFERENDO EM MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DA INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. EMERGÊNCIA SANITÁRIA INTERNACIONAL. LEI 13.979 DE 2020. COMPETÊNCIA DOS ENTES FEDERADOS PARA LEGISLAR E ADOTAR MEDIDAS SANITÁRIAS DE COMBATE À EPIDEMIA INTERNACIONAL. HIERARQUIA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. COMPETÊNCIA COMUM. MEDIDA CAUTELAR PARCIALMENTE DEFERIDA. 1. A emergência internacional, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, não implica nem muito menos autoriza a outorga de discricionariedade sem controle ou sem contrapesos típicos do Estado Democrático de Direito. As regras constitucionais não servem apenas para proteger a liberdade individual, mas também o exercício da racionalidade coletiva, isto é, da capacidade de coordenar as ações de forma eficiente. O Estado Democrático de Direito implica o direito de examinar as razões governamentais e o direito de criticá-las. Os agentes públicos agem melhor, mesmo durante emergências, quando são obrigados a justificar suas ações. 2. O exercício da competência constitucional para as ações na área da saúde deve seguir parâmetros materiais específicos, a serem observados, por primeiro, pelas autoridades políticas. Como esses agentes públicos devem sempre justificar suas ações, é à luz delas que o controle a ser exercido pelos demais poderes tem lugar. 3. O pior erro na formulação das políticas públicas é a omissão, sobretudo para as ações essenciais exigidas pelo art. 23 da Constituição Federal. É grave que, sob o manto da competência exclusiva ou privativa, premiem-se as inações do governo federal, impedindo que Estados e Municípios, no âmbito de suas respectivas competências, implementem as políticas públicas essenciais. O Estado garantidor dos direitos fundamentais não é apenas a União, mas também os Estados e os Municípios. 4. A diretriz constitucional da hierarquização, constante do caput do art. 198 não significou hierarquização entre os entes federados, mas comando único, dentro de cada um deles. 5. É preciso ler as normas que integram a Lei 13.979, de 2020, como decorrendo da competência própria da União para legislar sobre vigilância epidemiológica, nos termos da Lei Geral do SUS, Lei 8.080, de 1990.O exercício da competência da União em nenhum momento diminuiu a competência própria dos demais entes da federação na realização de serviços da saúde, nem poderia, afinal, a diretriz constitucional é a de municipalizar esses serviços. 6. O direito à saúde é garantido por meio da obrigação dos Estados Partes de adotar medidas necessárias para prevenir e tratar as doenças epidêmicas e os entes públicos devem aderir às diretrizes da Organização Mundial da Saúde, não apenas por serem elas obrigatórias nos termos do Artigo 22 da Constituição da Organização Mundial da Saúde (Decreto 26.042, de 17 de dezembro de 1948), mas sobretudo porque contam com a expertise necessária para dar plena eficácia ao direito à saúde. 7. Como a finalidade da atuação dos entes federativos é comum, a solução de conflitos sobre o exercício da competência deve pautar-se pela melhor realização do direito à saúde, amparada em evidências científicas e nas recomendações da Organização Mundial da Saúde. 8. Medida cautelar parcialmente concedida para dar interpretação conforme à Constituição ao §9º do art. 3º da Lei 13.979, a fim de explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do artigo 198 da Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais. Ora, estudos científicos, nacionais e estrangeiros, a exemplo daqueles desenvolvidos por pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco, pela Universidade de Stanford e pela revista científica britânica Nature, têm demonstrando a ineficácia de medidas como as estabelecidas nos decretos governamentais em questão, ou do chamado lockdown, na contenção da pandemia. E a Organização Mundial da Saúde já apelou aos governantes para que deixem de usar o lockdown, medida que tem apenas uma consequência que você nunca deve menosprezar: torna os pobres muito mais pobres. Qual, então, o respaldo do decreto governamental, no qual se fundou a prisão do indiciado, diante da Constituição da República, da decisão do Supremo Tribunal Federal pertinente ao tema, das orientações da Organização Mundial da Saúde e da ciência? Absolutamente nenhum. Ante o exposto, dada a manifesta ilegalidade da prisão em flagrante do indiciado, determino seu imediato RELAXAMENTO, com fulcro no art. 5º, inciso LXV, da Constituição da República, e no art. 310, inciso I, do Código de Processo Penal. Expeça-se alvará de soltura. Reconhecida a ilegalidade da prisão em flagrante, por consequência, deve ser reconhecida também a ilegalidade da apreensão dos bens pertencentes ao indiciado, descritos no auto de exibição e apreensão de fls. 14/15. Determino, pois, a imediata restituição dos referidos bens apreendidos indevidamente. Expeça-se o necessário. Cumpra-se. Intimem-se.